Com instalações e maquinário destruídos, e a perda de todos os produtos e matérias-primas, a maior parte do setor produtivo do estado ainda tenta avaliar quais serão os próximos passos.
De um lado, a falta de caixa e o difícil acesso ao crédito com taxas atrativas tem impedido a projeção de retomada daqueles que terão que reconstruir suas fábricas. A situação é ainda pior nos casos de empresas que já estavam endividadas antes dos prejuízos.
De outro, os aluguéis em disparada nas regiões mais elevadas do estado e a dificuldade em achar interessados nos terrenos que foram atingidos pelas enchentes, também podem minar as oportunidades de recomeçar do zero em outro lugar.
Ao g1, empresários gaúchos — que passaram não só por essa, mas também por duas enchentes recentes que afetaram o estado no último ano — dizem que parte das reservas financeiras que possuíam foi queimada nas outras cheias, e, agora, precisa se reinventar para voltar a caminhar com as próprias pernas.
“Um rastro de destruição sem precedentes”
Dono de hortigranjeiro em Cruzeiro do Sul, RS, tem prejuízo de mais de R$ 1 milhão
Não foi a primeira enchente que o empresário Fabio Scheibel, 41, enfrentou. Dono de um hortigranjeiro na cidade de Cruzeiro do Sul (RS), ele viu suas terras serem inundadas pelas águas do Rio Taquari outras duas vezes. Ambas no ano passado, uma em setembro e outra em novembro.
Em setembro, o Rio Grande do Sul havia sido atingido por um ciclone extratropical que inundou cidades e deixou mortos. Fabio conta que os estragos foram mais controlados, já que apenas a área em que mantinha suas plantações tinha sido afetada.
“Agora, a gente só saiu com a roupa do corpo. A água baixou, mas deixou um rastro de destruição sem precedentes. É coisa de se ver em filme. A gente nunca acha que vai passar por uma coisa dessas”, disse o empresário.
Ele, que morava no mesmo terreno em que mantinha o hortigranjeiro, conta que a propriedade foi completamente atingida. Na área de plantio, antes coberta por folhas verdes da plantação, só resta lama. Os veículos, tanto os de passeio quanto os utilizados para colheita, ficaram embaixo da água e foram perdidos, assim como a maior parte de seus bens materiais.
“Nem se vê mais o que estava plantado lá. A correnteza tirou todo o solo, deixando apenas areia em outras partes do terreno. A infraestrutura que tínhamos, os tratores, o galpão... foi tudo embora. Só sobrou duas residências, uma dos meus pais e outra que eu ainda estava construindo”, contou Fabio.
O empresário conta que apesar de sempre ter tentado deixar um colchão financeiro de emergência, voltado para imprevistos, precisou queimar toda a sua reserva nas duas primeiras cheias no estado, usando os recursos para refazer o plantio que havia sido perdido.
“Agora ficou complicado, não temos mais caixa nenhum. Mais do que nunca o governo vai ter que mostrar a que veio, porque se não tivermos algum tipo de incentivo ou opções de financiamento, vai ser bem difícil pensar em um horizonte”, afirmou o empresário.
Fabio diz que ainda não conseguiu colocar todas as perdas na ponta do lápis, mas estima que o prejuízo total ultrapasse R$ 1 milhão, considerando a plantação, a estrutura e os bens materiais perdidos.
No momento, ele está com sua esposa e sua filha de quatro anos na casa de amigos. Já houve um consenso na família de que não voltarão a morar no antigo terreno, tanto pelo perigo das enchentes quanto pelas memórias deixadas nas últimas semanas.
Fabio Scheibel e sua família — Foto: Arquivo pessoal
“Parecia um cenário de guerra. Demorou três dias até sermos resgatados, tivemos que subir no telhado para o helicóptero ajudar a gente. Não queremos ficar mais lá, mas a terra, a lavoura, não tenho como vender agora. Quem vai querer comprar uma área em que a enchente chega tão facilmente?”, questiona o empresário.
“Se desse, a gente não voltaria nem a plantar lá, mas não é tão simples. É um custo muito alto fazer essa mudança, já que cada pedacinho de terra aqui onde não dá enchente está supervalorizado”, acrescenta.
“A força da água arrebentou a parede e levou toda a nossa mercadoria”
A empresária Regina Mallmann, 57, também vai precisar de ajuda para recomeçar. Ela é dona de uma fábrica de brinquedos junto com seu marido, Alberto Mallmann, 58, situada em Estrela (RS).
O maquinário de produção ficou inutilizado após a enchente deste mês, e a empresa perdeu todos os seus produtos e matérias-primas.
Regina Mallmann e seu marido, Alberto Mallmann, donos da Brinquedos Piá. — Foto: Arquivo pessoal/ Regina Mallmann
“A nossa empresa ficava em dois prédios. Aquele em que fabricávamos os brinquedos foi totalmente tomado pela água, e as máquinas ficaram todas dentro da lama. No outro, que era um depósito, a força da água arrebentou a parede e carregou toda a nossa mercadoria. Fixamos a zero”, conta a empresária.
Regina também vivenciou as enchentes do ano passado, e diz que só conseguiu se reerguer porque negociou um prazo maior de pagamento com fornecedores e conseguiu vender o restante das mercadorias que ainda possuía nas festas de fim de ano.
Agora, o rombo no orçamento é bem maior. Segundo a empresária, se antes o prejuízo havia sido por volta dos R$ 500 mil, hoje as perdas já somam mais de R$ 1 milhão.
Fábrica e depósitos da Brinquedos Piá, em Estrela, no RS, foram inundados pelas enchentes. — Foto: Arquivo pessoal/ Regina Mallmann
“Estamos esperando algum recurso do governo federal ou algum crédito melhor, porque os juros dos financiamentos estão inviáveis, e até agora não conseguimos fazer nada. Tivemos até que demitir alguns funcionários porque teremos que começar pequenos de novo”, afirma.
A empresária conta, ainda, que também pensa em mudar para um local mais elevado, longe das encostas do rio Taquari.
“Mas está muito difícil procurar um lugar mais alto. Os preços das coisas, os aluguéis, tudo disparou porque tem muita gente que precisou sair de onde estavam para buscar lugares melhores. Ainda estamos procurando e, até lá, vamos ter que ficar com a atividade parada”, comenta.
“O dinheiro que eu tomei de empréstimo para investir foi para o lixo”
Além das perdas materiais trazidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, empresários gaúchos também precisam enfrentar a falta de caixa para pagar dívidas de créditos tomados antes da tragédia.
O empresário Ângelo Fontana, 63, dono de uma empresa de produtos de limpeza e higiene localizada em Encantado (RS), conta que a companhia vinha em uma onda de investimentos voltados para a expansão antes das enchentes de maio.
Fachada do prédio da Fontana S/A em Encantado, no RS. — Foto: Arquivo pessoal/ Ângelo Fontana
A empresa havia aprovado, há cerca de três anos, o projeto de uma nova fábrica em Goiás. Atualmente, passava por um processo de consolidação da companhia em Encantado, com atualização de equipamentos, máquinas e embalagens, antes de começar os preparativos da expansão para o Centro-Oeste.
“Nós nos alavancamos porque o projeto estava caminhando dentro dos conformes. Peguei um empréstimo para atualizar equipamentos e, nesse ano, o foco era para ser a instalação em Goiás. Mas com essa enchente, como fica o meu equilíbrio? Dos R$ 60 milhões que tomei [emprestado], perdi R$ 32 milhões. O dinheiro que eu tomei de empréstimo foi para o lixo” afirma o empresário.
Ele, que também é presidente da Câmara da Indústria e do Comércio do Vale do Taquari (CIC VT) e diretor da Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), conta que tem conversado com diversos empresários do estado.
“Muitos estão sem rumo, se questionando o que fazer agora”, explica Fontana.
“Desde a segunda cheia tem muita gente ainda tentando pegar fôlego para continuar. Mas, agora, sem estoque e sem maquinário, alguns terão que ficar meses sem produzir. E isso é ainda pior porque, sem fornecer produto para o varejo, perde-se espaço de prateleira, perde-se contatos. É um prejuízo intangível que é difícil de medir”, completa.
Empresa de Encantado, no RS, tem prejuízo de R$ 32 milhões após cheias do Rio Taquari
À espera de realocação e medidas financeiras
O executivo reforça que há temores entre os empresários de que haja um “êxodo” de pessoas do estado. “As pessoas que perderam tudo, vão continuar aqui? Será que vamos conseguir atrair mão de obra?”, questiona o empresário.
“Por isso, as medidas precisam envolver tanto o lado público quanto o lado das entidades, porque não é só limpar a casa ou a fábrica. Reconstruir as companhias e manter mão de obra é uma tarefa que também é importante”, acrescenta Fontana.
O empresário Luis Felipe Soares, 30, que tem uma barbearia localizada em Taquari, RS, afirma que apesar de ter contratado um seguro total para seu comércio e residência, ambos atingidos pelas cheias, ainda não conseguiu nenhum ressarcimento por parte da seguradora — que, por sua vez, afirma que a apólice contratada não teria cobertura contra enchentes.
Empresa Fontana S/A, em meio às enchentes causada pela alta do Rio Taquari. — Foto: Arquivo pessoal/ Ângelo Fontana
"Cheguei a ir atrás de auxílios, mas o dinheiro ainda está sendo direcionado para as pessoas que têm renda menor. Acho que nós seremos os últimos a receber algo", disse Soares.
Para Fontana, mesmo que parte dos empresários queira continuar no Rio Grande do Sul, muitos já começaram um planejamento para tentar um recomeço em outro lugar.
“Precisamos pensar na realocação das companhias, porque tem muitas entidades que não podem ficar onde estão. Temos que realocar na região ou no estado. Se não, realocaremos fora dele”, conclui.
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