Universidade Federal de Rondônia, Unir — Foto: Jaíne Quele Cruz/g1
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Universidade Federal de Rondônia, Unir — Foto: Jaíne Quele Cruz/g1

A Universidade Federal de Rondônia (Unir) e o professor da instituição, Samuel Milet, são alvos de uma denúncia de assédio moral feita por uma estudante do curso de direito. Ela ingressou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF) e uma ação indenizatória na 4ª Vara Cível da Justiça Federal.

"O que eu sinto hoje em sala de aula, quando ele está presente, é: mãos formigando, meu rosto e minha boca dormente, o coração bater forte. E eu acho que isso é parte do que a minha turma também sente", relata Josi Gonçalves, aluna que fez a denúncia.

Os eventos que culminaram na ação tiveram início há cerca de um mês, quando o professor ministrava a aula de Direito Civil. Para criticar o que chama de “ideologia de gênero”, ele teria citado o episódio em que a Unir foi condenada porque o próprio professor chamou uma palestrante da Universidade de Brasília (UnB) de 'sapatona doida' e ‘vagabunda’ por tratar questões como gênero e aborto.

ENTENDA:

“Ele tornou a repetir, sem nenhum contexto com o tema que ele ministrava em sala de aula. Riu quando se referiu ao termo ‘sapatona’ e disse também [de forma debochada] que só a Unir que tinha sido condenada”, relembra Josi.

“Eu me senti muito ferida, muito atravessada. Me senti ferida como mulher, porque quando alguém chama outra mulher de vagabunda, eu tenho que me posicionar porque isso me atinge também. Quando alguém fala de ‘ideologia de gênero’, isso me atravessa a alma porque eu tenho um filho que é não-binário. Essa não era uma questão para ser discutida em sala”, complementa.

Estudante da Unir, Josi Gonçalves denuncia professor por assédio moral — Foto: Gustavo Luz/Rede Amazônica

No dia seguinte à aula, Josi enviou uma mensagem em um grupo de WhatsApp do curso, se posicionando sobre o comportamento do professor em sala.

“Ele chamou uma mulher de vagabunda e tinha se portado como se estivesse exibindo um troféu, sem nenhum escrúpulo e eu, como a mais velha da turma, estava me posicionando porque ele é formador de opinião e ele não podia se esquecer disso. E aí veio uma torrente de coisas que aconteceram a partir desse momento”, relembra.

A mensagem enviada no grupo e o número de telefone da estudante foram vazados e o professor Milet entrou em contato com ela através do WhatsApp, demonstrando estar ofendido e informando que entraria com uma queixa-crime contra a aluna por injúria e difamação.

Depois disso, Milet encaminhou áudios para o líder da turma comentando o caso e se referindo à sala como “solo inimigo” por ninguém ter se posicionado a favor dele, como nos seguintes trechos transcritos:

  • “Quem cala, consente. Se ninguém me defendeu porque acha que eu tô errado, então eu tenho dois caminhos a tomar: primeiro é deixar a turma. [...] Eu não quero estar em solo inimigo. Eu tinha prometido pra vocês, e não é obrigação minha, de dar um questionário. Já não vou dar mais o questionário. [...] Eu simplesmente vou dar as avaliações dentro do conteúdo, sem nenhuma maldade. Eu só acho que ajudar, eu não devo ajudar mais”.
  • “O que teve foi um caso isolado de uma pesquisadora de fora, que eu, no calor da discussão, eu proferi algumas palavras que não deveria ter feito, mas fiz. Quer dizer que toda vez que você discute com seu irmão, com sua mãe, com seu pai, com sua mulher, com sua noiva e chama ela disso e daquilo você é misógino, você é preconceituoso, você é homofóbico? Ou simplesmente são palavras proferidas no calor da emoção?”.

Medo e silenciamento

“Ele disse para os alunos que quem fosse se manifestar em meu benefício, ele iria entrar com ação porque a pessoa estaria praticando falso testemunho falando em meu benefício”, relembra Josi.

Ainda em sala, Milet teria proferido ofensas contra Josi ao chamá-la de “cobra”, “falsa” e “covarde”.

Um estudante da turma, que preferiu não se identificar por medo de retaliações, relatou ao g1 que o clima na turma é de tensão e que o comportamento do professor faz com que eles se sintam amedrontados.

“Eu tô com bastante medo e é assim também que eu vejo que a turma se sente. Mas eu não poderia ficar calado porque hoje foi a Josi, amanhã pode ser outra pessoa. Mesmo com tudo isso acontecendo ninguém consegue se posicionar, todo mundo tem medo de falar alguma coisa e ser processado”.

Quando questionada se teme alguma retaliação por denunciar o caso, Josi responde:

"Eu tenho receio por uma coisa. Quando eu estava falando com ele, ele disse: 'eu sei o que você está tentando fazer, você está tentando fazer com que eu agrida você, mas eu não vou fazer isso'. Eu fiquei pensando depois: 'será que ele partiria para as vias de fato?' Nada que uma mulher diga é suficiente para fazer com que um homem se sinta em estado de agredir essa mulher. Então essa é uma fala preocupante e que me põe medo".

Pedido de indenização

A advogada Mably Fernandes, que acompanha a Josi no processo, explica que além do professor, a Unir também é alvo da ação porque os fatos aconteceram em sala de aula, enquanto o professor representava a instituição federal.

“Mulheres são mortas todos os dias, o machismo mata. Imagina você ser professor, formador de opinião e você relevar o machismo, inclusive minimizar o machismo como se ele não fosse nada. O que ela [a Josi] passou merece e deve ser punido”.

Mably ressalta que o pedido de indenização por dano moral é referente a todos os transtornos pelos quais a Josi passou por conta do comportamento do professor, incluindo prejuízos educacionais.

“A gente tá falando de uma aluna que é uma mulher, que é mãe, que está fazendo sua segunda graduação. Ela não estava ali brincando, ela estava ali porque ela quer adquirir conhecimento. E é justamente isso que foi cerceado dela. Além dela não ter direito ao conhecimento, ela ainda é exposta e humilhada”.

“Não é a primeira vez, mas eu espero que seja a última. Eu realmente espero que nós mulheres não sejamos alvo da misoginia, do machismo tão escrachado. Enquanto isso acontece na clandestinidade e as pessoas afirmam que não veem, é uma coisa. Mas agora tá escrachado. Qual é a nossa postura como sociedade? Qual a resposta que a gente dá pra isso?”, complementa.

O Ministério Público Federal informou que está apurando o caso e pretende enviar à Unir uma recomendação para que seja aberto um processo administrativo disciplinar e adotadas medidas pedagógicas contra o professor.

"É importante que a universidade mostre para o público que esse tipo de comportamento não é tolerado, especialmente de uma instituição pública. A liberdade de expressão é importante, mas ela tem limitação no discurso de ódio", aponta o procurador da República, Raphael Bevilaqua.

O que dizem os outros envolvidos?

A Universidade Federal de Rondônia informou à Rede Amazônica que a Ouvidoria da instituição recebeu a denúncia da Josi com relação ao professor Milet e o assunto está “em fase preliminar de apuração”.

“O departamento acadêmico ao qual o docente denunciado é vinculado foi acionado pela Ouvidoria da Unir para as medidas cabíveis, observando o necessário respeito pelo amplo direito de defesa. Do mesmo modo a Ouvidoria da Unir mantém contato com a denunciante e acompanhará o caso em todas as instâncias administrativas em que deverá tramitar”, consta na nota.

A universidade ressaltou também que “repudia veementemente qualquer caso de assédio e se solidariza com as vítimas em absolutamente todas as situações em que possam sofrer e ser expostas a situações que as fragilize”.

Com relação a ações para coibir casos semelhantes, a Unir informou que “tem se empenhado em dotar de maior estrutura os setores responsáveis por receber relatos de assédio e por proceder a apuração de modo rigoroso – com o necessário e legalmente obrigatório sigilo – de todas as situações que chegam formalmente ao conhecimento da Universidade”.

O professor Milet foi procurando pela Rede Amazônica e pelo g1 Rondônia, mas não quis se pronunciar sobre o caso.

O g1 Rondônia também entrou em contato com a Ordem do Advogados dos Brasil - Seccional Rondônia (OAB-RO), mas não obteve retorno até a última atualização desta matéria.

*Colaborou: Fábio Diniz e Jefferson Oliveira, Rede Amazônica.