Sem regulamentação, motociclistas por aplicativo são um caso sem solução em Manaus

Sem regulamentação, motociclistas por aplicativo são um caso sem solução em Manaus

 

Cerca de  30 mil pessoas em Manaus atuam nos aplicativos de transporte conduzindo motocicletas, seja no delivery ou transporte de passageiros (Foto: Márcio Silva / A Crítica)

Alimentos, roupas, pessoas e tudo mais que caiba na garupa de um motociclista são transportados de uma ponta a outra da cidade e ajudam a movimentar a economia. Nas vias da capital amazonense eles são presença cada vez maior. Os números, apesar de não oficiais, são expressivos. Estimativa feita pela Central Única dos Trabalhadores por Aplicativo aponta que cerca de 30 mil pessoas atuem nos aplicativos de transporte conduzindo motocicletas, seja no delivery ou transporte de passageiros.


Na tentativa de reordenar o trânsito, a prefeitura estuda a criação de um aplicativo municipal para concentrar as atividades dos motociclistas que atuam nos apps. A confirmação foi dada pelo titular da Secretaria Municipal de Trabalho, Empreendedorismo e Inovação (Semtepi), Radyr Júnior, na semana em que a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM), divulgou o Boletim Epidemiológico da Mortalidade por Acidentes de Transporte Terrestre, indicando um aumento 50% nos óbitos por acidentes com motocicletas que totalizaram 219 entre 2018 e 2022.


O secretário  destaca a existência de vários aplicativos de transporte na cidade de Manaus, mas que a  prefeitura tem o interesse de garantir mais lucro e segurança para os empreendedores nesse setor. Segundo ele, um dos desafios é identificar a quantidade real de motoristas de aplicativo em operação, uma vez que alguns migram entre diferentes plataformas e ainda são contabilizados em mais de uma delas.


Há intenção de fazer um levantamento para incentivar os motoristas a concentrarem suas atividades em um único aplicativo, visando maior monetização e segurança tanto para os motoristas quanto para os usuários. A ideia é reordenar a permissão desses profissionais para atuarem na capital.  


“Existe uma conversa que está sendo tratada com os próprios líderes desses grupos de motoristas de aplicativo, a própria Câmara [Municipal] também se envolve nessa temática em que estamos fazendo um trabalho não só tentar desenvolver o aplicativo, mas fomentar a atividade através de um aplicativo para fazer com que o motorista ganhe mais e traga mais segurança tanto para o motorista quanto para o usuário”, disse o secretário.

 A movimentação da prefeitura em prol da regulamentação do transporte de passageiros em motocicletas por aplicativo, começou em fevereiro deste ano, após uma grande mobilização dos trabalhadores movida por uma suposta apreensão de motocicletas no Centro Histórico da cidade por conta de uma suposta proibição da atividade, o que já foi desmentido pelo Instituto Municipal de Mobilidade Urbana (IMMU). Desde maio deste ano,  o governo federal também discute a regularizar trabalhadores por aplicativo por meio de um grupo de trabalho. Em nota, a  Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) disse que apoia a e participa das discussões sobre a regulação.  Atualmente, em todo o país, cerca de 385 mil entregadores atuam com aplicativos, com idade média de 33 anos.


Em Manaus, a modalidade de transporte em motocicletas está disponível aos desde setembro de 2021, e até agora não tem uma solução. Mesmo com a tratativas em âmbito municipal, a regulamentação, conforme o  vice-presidente da Comissão de Trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Amazonas, Iran Fabrício, tem que partir da instância federal.  Ele ressaltou a importância de regulamentar os critérios objetivos para quem pode conduzir veículos por aplicativo, como os motociclistas. “Falta fiscalização. Enquanto não tem fiscalização esse pessoal está fazendo o que quer”.


“Quando não existe uma regulamentação todo mundo se acha no direito de ser um profissional, ai vamos cair naquele ditado que diz: ‘existem profissionais e profissionais’. Imagine uma pessoa recém habilitada que acabou de adquirir uma motocicleta que se propõe a fazer frete, trabalhar com moto uber, carregando passageiro. Será que essa pessoa vai estar qualificada devidamente para trabalhar com segurança com esse passageiro? É difícil. Nós que trabalhamos no trânsito sabemos que uma pessoa recém habilitada não conduz ainda com perícia suficiente para que ele possa conduzir um passageiro”, alerta o vice-presidente da comissão de transportes.

Vice-presidente da Comissão de Trânsito da OAB - Seccional Amazonas, Iran Fabrício, regulamentação dos motociclistas por aplicativos tem que partir da instância federal (Foto: Márcio Silva / A Crítica)

Vice-presidente da Comissão de Trânsito da OAB - Seccional Amazonas, Iran Fabrício, regulamentação dos motociclistas por aplicativos tem que partir da instância federal (Foto: Márcio Silva / A Crítica)


A regulamentação, porém, não é vista de maneira positiva por parte da classe, que prefere trabalhar de forma independente por acreditar que intromissão do governo possa aumentar o preço para os passageiros e tornar mais burocrático o serviço que atualmente é feito de maneira liberal, mas desordenada.


Um dos que são contra é o motorista Toni José da Silva Batista, 37. Ele trabalha com aplicativo há aproximadamente 3 anos, quando estava desempregado e viu nas plataformas uma forma para obter uma renda. Atualmente, ele trabalha com o aplicativo apenas à noite, por até 5 horas diárias, como uma forma de complementar o orçamento da casa.


Para ele, o aplicativo é uma boa opção para quem precisa de uma renda extra e gosta da flexibilidade de poder definir seus próprios horários. Anteriormente, quando trabalhava exclusivamente com o aplicativo, conseguia ganhar em torno de R$ 300 por dia, mas atualmente ganha cerca de R$ 100 a R$ 120 diariamente, já descontados os custos com gasolina.


Toni reconhece que existem pessoas que pilotam de forma imprudente para acelerar viagens e ganhar mais dinheiro. Diferente de boa parte da categoria, ele diz que buscou cursos no Detran-AM.


Toni José da Silva Batista, 37, é contra regulamentação dos motociclistas por aplicativos (Foto: Márcio Silva / A Crítica)

Toni José da Silva Batista, 37, é contra regulamentação dos motociclistas por aplicativos (Foto: Márcio Silva / A Crítica)


“Eu acho que [a regulamentação] é uma péssima ideia. Aqui é uma maneira de você somar, complementar sua renda. Eu tenho meu emprego fixo. Eu trabalho e quando saio da empresa faço algumas corridas. Eu acho uma péssima ideia e acho que não convém fazer isso. Até porque ninguém obriga você a fazer aplicativo, aqui é uma opção, faz quem quer”, declarou Tony.

A popularização dos motociclistas por aplicativo, porém, fez a renda de mototaxistas como César da Silva Santos, 50, despencar nos últimos anos. Ele atua na profissão desde 2006 e participou das mobilizações pela regularização do mototáxi e dos motofrete, que resultaram na criação da Lei nº 12.009 de 2009.


César conta que chegou ao ramo movido pela paixão pelas motocicletas. No início, eram os passageiros que precisavam encontrá-los nos pontos de embarque, mas com o passar do tempo a lógica mudou e com a invasão dos apps foi preciso se adequar, mas baixas tarifas praticadas nos aplicativos tornou o trabalho cansativo, sendo necessário trabalhar mais horas para obter um ganho satisfatório.


“Se o cara vai trabalhar no Distrito [Industrial] ele começa às 6h00 da manhã, se levanta às 4h e vai fazer uns R$50, para ele chegar no trabalho dele. Quando ele terminou trabalho, ele volta e faz R$ 30, mas ele está seguro porque pode procurar a profissão dele. Nós que vivemos disso aqui e pagamos por isso. Temos carteira, temos o seguro [para acidentes] que é em torno de 22 mil e aí qualquer curumim pode estar pilotando uma moto. Não estou descriminando só quero que esteja dentro da lei: 21 anos de idade, dois anos de habilitação, ficha limpa. Será que os políticos visam só o número de pessoas não querem perder votos? Nós profissionais somos esquecidos?”, criticou o mototaxista.

César da Silva Santos, 50, trabalha como mototaxista desde 2006 (Foto: Márcio Silva / A Crítica)

César da Silva Santos, 50, trabalha como mototaxista desde 2006 (Foto: Márcio Silva / A Crítica)


O impasse entre os motoristas de aplicativo e mototaxista podem resultar em uma ação inédita no Brasil. A Defensoria Pública do Amazonas (DPE-AM) estuda uma reparação moral coletiva movida pelos mototaxistas contra a prefeitura de Manaus. Os profissionais regulamentados afirmam que o processo de cadastramento do município é “restritivo” e “incoerente” e prejudica a concorrência com os apps.


Defensor público responsável pelo caso, que até o momento está nas fases de audiência pública, Carlos Almeida, enfatiza que a mobilidade urbana é um critério fundamental para proporcionar uma vida adequada no espaço urbano. Ele lembra que existem legislações, como o Estatuto de Mobilidade Urbana, o Estatuto das Cidades e o Estatuto de Metrópoles, que tratam desse assunto e impõem responsabilidades ao poder público municipal e estadual.


Na última plenária, no entanto, somente o Departamento de Trânsito do Amazonas (Detran-AM), atendeu ao convite da DPE-AM. A prefeitura até o momento não prestou esclarecimentos sobre o andamento da regulamentação dos aplicativos.


Defensor Público Carlos Almeida está a frente de uma ação coletiva movida pelos mototaxistas contra a prefeitura de Manaus (Foto: Márcio Silva / A Crítica)

Defensor Público Carlos Almeida está a frente de uma ação coletiva movida pelos mototaxistas contra a prefeitura de Manaus (Foto: Márcio Silva / A Crítica)


“Não está tendo debates sobre garantia mínima de dignidade muitos deles, motociclistas por aplicativo. Estão praticamente como escravos modernos. Se isso está acontecendo e há uma insatisfação, qual a solução que o sindicato e o poder público dá para isso? Rezar? Alguma solução tem que ser dada e infelizmente quem está com a bola é o poder público municipal. Isso não resolver com entrega de colete e cesta básica”, enfatizou o defensor.


Carga horária

Segundo pesquisa feita pelo Centro Brasileiro de Análise Planejamento (Cebrap), a jornada média de trabalho de um motorista por aplicativo oscila entre 13 e 17 horas por semana no país, e a renda mensal líquida foi calculada entre R$ 1.980 e R$ 3.039. Essa realidade, no entanto, não corresponde muitos dos profissionais que atuam sobre duas rodas como o Jonathas Passos da Silva, 18.


Jonathas é entregador por aplicativo, mas também atua no transporte de passageiros. Desde que concluiu o Ensino Médio ele passou a trabalhar em regime integral com os apps. A rotina dele vai das 5h às 22h com intervalo de 1h. Houve meses que ele nem sequer teve um dia de folga.


Mesmo com a rotina pesada, ele afirma que vale a pena, comparado a remuneração que ganhava em uma rede de supermercados. Ele fatura cerca de R$ 300 diariamente, em dias de movimento mediano. Em dias de alta demanda o jovem faturou mais de R$ 500 no Dia dos Pais do ano passado.


Jonathas Passos da Silva, 18, é entregador por aplicativo, mas também atua no transporte de passageiros (Foto: Márcio Silva / A Crítica)

Jonathas Passos da Silva, 18, é entregador por aplicativo, mas também atua no transporte de passageiros (Foto: Márcio Silva / A Crítica)


“Depende da necessidade de cada um. Cada entregador tem suas necessidades. Tem uns que trabalharam por hobbie, tem os que trabalham por necessidade. Eu, por exemplo, trabalho por um sonho que é montar minha empresa. Eu não quero isso pro resto da vida. É uma coisa que dá dinheiro, mas eu já sofri, só nesses dois anos, uns 12 acidentes”, contou o entregador que no acidente mais grave chegou a ficar em coma quando colidiu a motocicleta com um carro que vinha na contramão em uma via do bairro Parque Dez, Zona Centro-Sul.

Insegurança predomina

A busca de uma renda extra pode ser perigo em diversos sentidos. Não é difícil encontrar relatos nos grupos criados por trabalhadores de aplicativo ou mesmo em uma busca na internet, os casos de crimes praticados contra esses trabalhadores. Um dos casos que demonstram a insegurança vivida por que atua nesse ramo é do motociclista, Márcio Silva, 40, que foi espancado e perfurado, em uma área de mata da Rua da Sepror, bairro Colônia Terra Nova, Zona Norte de Manaus, em abril deste ano.


A vítima chegou a ser encontrada com vida por moradores da região nas primeiras horas da manhã do dia 15 de abril e chegou a contar que teria sido sequestrado na noite anterior.


Motociclistas como Alissowel Monteiro, 25, além da violência no trânsito, também convivem com a possibilidade de assaltos e sequestros. Para evitar esse tipo de situação, ele se protegem como podem.


O motociclista conta que evita áreas perigosas, como ruas sem saída e bairros como o Tarumã-Açu, Zona Oeste, onde ocorrem emboscadas e assaltos com frequência. Por segurança, ele faz parte de uma  equipe de motoboys que se auxiliam na comunicação,  utilizando códigos para informar sobre atitudes suspeitas de passageiros, mas há quem ande sem o mesmo amparo.


“Eu sou de uma equipe de motoboys. São pessoas que se auxiliam em comunicação direta na nossa rádio aqui. Já aconteceu acidentes com um, assaltos com outro. Isso acontece para praticamente toda a semana”, relatou o motociclista.

Alissowel Monteiro, 25, é membro de equipe de motoboys, a fim de ter mais segurança (Foto: Márcio Silva / A Crítica)

Alissowel Monteiro, 25, é membro de equipe de motoboys, a fim de ter mais segurança (Foto: Márcio Silva / A Crítica)


Uma melhor segurança foi uma das reivindicações da paralisação nacional dos trabalhadores por aplicativo, em maio deste ano. Eles pedem auxílio jurídico e psicólogo e amparo as vítimas de assaltos e acidentes. Além de reparação as famílias que perderam membros durante o trabalho nas plataformas. Até o momento, nenhum das reivindicações foi atendida pelas plataformas.


Outra reclamação é pela melhor divisão dos lucros. Atualmente, as plataformas cobram uma taxa média de 30% o valor da corrida e a quilometragem custa cerca de R$ 1. Os trabalhadores querem o dobro.


“No aplicativo tem corrida que paga R$ 3, o que eu vou fazer com R$ 3? Na cidade é no máximo R$ 20 a R$ 25, tento pegar [corridas] com no mínimo cinco [reais]. Em média pagar de R$ 5 a R$ 8. Por isso que às vezes reclamam que cancelam, porque a corrida é ruim, ou porque é ruim a distância, ou se tem uma corrida boa, por exemplo, lá na Arena [da Amazônia], mas está tendo show lá, tu acha que vale a pena passar meia hora para ganhar R$ 5? A plataforma paga somente 60% do valor da corrida. Eu já cheguei a fazer uma corrida que deu R$17 para mim, mas deu R$34 pro passageiro, ou seja, deu 50% para a plataforma”, questionou Alissowel.

A reportagem entrou em contato com o IMMU, mas até o fim da reportagem não foi possível esclarecer como está o andamento das negociações da prefeitura com os trabalhadores de aplicativo. Também questionamos a Secretaria de Segurança Pública (SSP) acerca da quantidade de crimes praticados contra essa classe, mas não houve resposta.

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