Caso João Paulo: crianças achadas mortas em caixa térmica de salão paroquial em 1990 fizeram polícia suspeitar de serial killer; entenda

Caso João Paulo: crianças achadas mortas em caixa térmica de salão paroquial em 1990 fizeram polícia suspeitar de serial killer; entenda


Isso após dois garotos de 8 e 9 anos serem encontrados mortos dentro de uma caixa térmica em um salão paroquial, em Charqueada (SP), a 35 quilômetros de Piracicaba (SP), nove meses após a morte de João Paulo.

O novo crime aconteceu em 13 de julho de 1990. Robson José de Barros, de 9 anos, e o primo dele, Paulo César Zacarias Bueno, de 8 anos, saíram para brincar e foram encontrados na caixa de isopor recoberta de alumínio, no salão da igreja, ao lado de suas roupas.

O g1 mostra a seguir os pontos que fizeram com que a polícia relacionasse os dois crimes e, consequentemente, levantasse a tese de um serial killer. Este texto contém revelações sobre o terceiro episódio do podcast. A recomendação é ouvi-lo antes (acesse o link abaixo) e ler a reportagem depois.

O podcast “Medo do Escuro - O Caso João Paulo” revisita o caso do garoto de 9 anos encontrado morto dentro de um freezer em um colégio católico tradicional. Um dos crimes mais emblemáticos da história de Piracicaba, que completa 35 anos em 2024.

Mesmo modus operandi?

“Ambos os casos aconteceram em vésperas de festas, um na escola e outro no salão paroquial. As crianças são de idades muito próximas, 8 e 9 anos. Em ambos os casos, as crianças estavam praticamente nuas”, afirmou o legista Fortunato Antonio Badan Palhares em entrevista à EPTV, em 21 de julho de 1990.

Também participava dessa entrevista o delegado seccional de Piracicaba, Sério Augusto Dias Bastos, que afirmou que estavam sendo apuradas duas linhas: uma de que a mesma pessoa matou as três crianças e uma de que se tratavam de assassinos diferentes, mas que o de Charqueada agiu inspirado no de Piracicaba.

Robson José de Barros, de 9 anos, e o primo dele, Paulo César Zacarias Bueno, de 8 anos, vítimas do crime em Charqueada — Foto: AcervoEP

“Existe uma maneira de agir no colégio Dom Bosco e uma maneira de agir idêntica nesse caso lá de Charqueada. Isto pesa muito e nós podemos realmente estar aí com um elemento de debilidade psíquica e atacando criança”, afirmou Bastos.

Ambiente católico

Além disso, os dois locais onde os corpos foram encontrados tinham ligações com a igreja católica. “To pensando ser alguma rivalidade contra a igreja, algum recalque contra a igreja. Talvez, tenha alguma ligação”, comentou na época o padre vigário de Charqueada.

No entanto, nunca surgiram provas das ligações entre os casos. Dois suspeitos pelos assassinatos dos garotos Robson e Paulo César chegaram a ser presos cinco anos depois e a tese era de que as duas vítimas foram mortas porque estariam furtando doces que seriam consumidos em uma festa. Mas a prisão foi revogada e o caso foi arquivado sem que alguém fosse condenado pelo crime.

Caixa térmica onde corpos de garotos foram encontrados em Charqueada — Foto: AcervoEP

Delegado da época lembra semelhanças

Em entrevista ao g1, depois de 33 anos das mortes em Charqueada, Bastos voltou a falar sobre o modus operandi - modo de agir do assassino - parecido e da hipótese de uma pessoa ter se influenciado pelo crime que ocorreu na cidade vizinha.

“Modus operandi, quando ele ocorre de forma muito similar, ou eu for por imitação, porque eu tomei conhecimento que em Piracicaba aconteceu isso e deu certo, tem aquele negócio da imagem, que vai pra televisão, muita divulgação, e tem o psicopata no meio do caminho igual o anterior, pode ter repetido lá em Charqueada”, afirmou.

Clima de medo na sociedade

Apesar da suposta ligação entre os crimes não ser comprovada, as mortes em Charqueada foram mais um elemento para abalar e causar medo na população da região naquele início da década.

“O primeiro crime chocou, o segundo chocou mais ainda, apesar de as investigações demonstrarem que não se tratava de um assassino em série. Para a vida e para a comunidade, portanto, sendo em série ou não em série, você convive com a violência, com o perigo, com a ameaça”, afirma o escritor Ademir Barbosa Júnior, o Dermes, que estudou no colégio Dom Bosco na época da morte de João Paulo.

Salão onde os corpos dos garotos foram encontrados em Charqueada — Foto: AcervoEP

Carros suspeitos e novo investigado

Sem ter nada concreto sobre o caso até aquele momento, a partir de junho de 1990, a polícia passou a investigar relatos de que carros de dois modelos diferentes foram vistos dentro do pátio do colégio naquele final de semana da morte do garoto. E que um veículo do mesmo modelo e cor de um deles também teria percorrido as imediações da casa de João Paulo.

Nos desdobramentos dessa apuração, a equipe policial pediu e teve autorização judicial para acessar a lista de ligações feitas por um funcionário da área de educação do colégio e também mapeou os locais onde ele esteve naquele final de semana. Mas não encontrou provas que o incriminassem.

Esse funcionário afirmou depois, em depoimentos, que sofreu transtornos pelas investigações das quais foi alvo. Ele relatou que chegou a ficar “em estado de choque” quando viu uma reportagem onde era citado como suspeito e precisou se afastar por cerca de três meses do trabalho. Também contou que sua mulher começou a ter crises de choro. Os dois precisaram de tratamentos psicológicos. O g1 tentou contato com esse ex-funcionário, mas não tive resposta.

Folha do inquérito policial do caso João Paulo — Foto: AcervoEP

Teses de roubo testemunhado e sequestro

Nessa fase no inquérito, duas pessoas afirmaram para em depoimento à Polícia Civil que João Paulo teria presenciado um assalto cerca de um mês antes da sua morte e foi ameaçado pelos irmãos que praticaram esse crime para que não contasse nada para ninguém.

Porém, essas duas pessoas disseram que ouviram isso de outras pessoas e foi mais uma suposta pista que não levou a algo concreto porque todos os outros questionados diziam não saber nada a respeito, nem familiares da vítima.

Para José Silvestre, isso também seria uma forma de tentar desviar a culpa para pessoas menos influentes na comunidade.

“Três, quatro pessoas, vizinhos, o menor que já teve uma questão com a polícia. ‘Ah, ele mora próximo? Então quem pode fazer isso é o Zezinho lá da esquina, é o Zezinho da comunidade, porque gente da sociedade não vai praticar esse tipo de situação’'”, critica.

Advogado José Silvestre conversa com repórter da EPTV sobre o caso — Foto: AcervoEP

Especulações x imprensa

Jornalista que cobriu o caso pelo Jornal de Piracicaba, Miromar Rosa afirmou ao g1 que as diversas especulações e boatos também atrapalhavam o trabalho da imprensa.

“Como tudo na redação, você tem que ponderar. Mas atrapalhava muito, atrapalhava muito. Porque aí já surgia boato: 'olha, mataram outra criança'. O termo já era esse. 'Mataram outra criança. Foi encontrada outra criança'. Aí aquilo acabava atrapalhando o trabalho da mídia. Você perdia tempo checando e não era nada disso”.

Para ele, isso acontecia por um motivo específico.

“Era porque o caso tava muito vivo, as pessoas estavam sofrendo com aquilo porque não tinha um final. Claro que não seria um final feliz, mas seria assim: 'olha, existe um culpado, existe o mandante ou assassino que matou uma criança de 9 anos'”.

Cartas abertas

Em meio às supostas pistas que não levavam a nada, o tempo passava sem uma conclusão do inquérito e as pressões da sociedade continuavam.

Em 29 de outubro de 1991 - quase dois anos depois da morte de João Paulo -, as investigações continuavam e o Jornal de Piracicaba trazia uma carta assinada pela associação dos professores do Colégio Salesiano Dom Bosco que criticava suspeitas levantadas por um advogado, sem citar nomes. Veja esse documento abaixo:

Carta de associação de professores sobre as suspeitas levantadas por advogado sobre o autor da morte de João Paulo — Foto: Reprodução/ Jornal de Piracicaba/ Polícia Civil

Já no dia 19 de dezembro de 1991, o delegado Sérgio Bastos recebeu uma nova carta, desta vez da Inspetoria Salesiana de São Paulo, que dizia que os salesianos estavam sofrendo consequências muito sérias pela falta de conclusão para o caso.

Um documento que cita a gravidade das especulações sobre o caso e que também cobra a conclusão do inquérito. Veja trecho dessa carta a seguir:

Trecho de carta da Inspetoria Salesiana sobre falta de solução para o caso João Paulo — Foto: Reprodução/ Inspetoria Salesiana de São Paulo/ Polícia Civil

Sequestro?

No dia 26 de junho de 1992, o caso teve mais um reflexo dos boatos. A polícia recebeu denúncia anônima de uma mulher sobre uso de drogas num endereço no bairro Alemães. Embora já tivessem se passado dois anos e meio da morte de João Paulo, a denunciante dizia que antes da morte do garoto, ficou sabendo que ele estaria naquele endereço, sequestrado, e que tinha ouvido o choro dele. E que não denunciou antes por medo dos supostos sequestradores.

A denúncia chegou a ser relatada oficialmente no inquérito mas nessa altura, como ouviu há pouco, a polícia já tinha restringido as investigações ao interior do colégio e essa tese do sequestro foi descartada.

Boatos contra a vítima

Em certo ponto, os boatos atingiram até a vítima.

“Uma coisa que começou a chamar a atenção foram os desvios de informações. E o João Paulo começou a ser taxado por alguns setores no sentido de que ele não era uma criança bem vista, era uma criança abandonada e coisas que não procediam [...] Quem era o menino? Filho de um mecânico. E a gente sabe como as coisas funcionam. Até porque eu digo assim, na minha posição como um homem negro, nós sabemos como a sociedade nos vê”, afirma José Silvestre.

Sérgio Bastos folheia inquérito policial na época das investigações — Foto: AcervoEP

O advogado da família da vítima recorda também como comentários também respingaram nele mesmo. Ele conta que, por se tratar de um caso ocorrido em uma escola católica e ele ter atuado com a tese de que uma pessoa ligada ao colégio teria praticado o crime, recebeu críticas de um padre durante uma missa da qual participava na cidade.

“Em determinado momento, o padre durante o sermão trouxe o caso João Paulo Brancalion. Mas eu nunca vi tanta crítica a minha pessoa como o que ele fez. Nominal. ‘porque esses advogados, José Silvestre da Silva e o Jornal de Piracicaba estão querendo acabar com a igreja católica. Falou, falou, falou um tempão”, relembra.

O que dizem a Igreja Católica e o colégio

O g1 pediu entrevista com um representante da Diocese de Piracicaba para tratar da repercussão do caso na comunidade católica e a situação relatada por Silvestre acima. Mas a assessoria informou que os dos bispos da diocese no período que poderiam falar a respeito já faleceram. Além disso, explicou que o colégio tem inspiração católica, mas não possui vínculo administrativo ou jurídico com a Diocese.

Fotos de perícia são analisadas durante as investigações do caso João Paulo — Foto: AcervoEP

Em nota ao g1, o Colégio Dom Bosco afirmou que “se pauta pela transparência nas relações mantidas com os diversos públicos” e “tem uma trajetória de posicionamento ético nas mais diversas situações”.

E informou que a atual diretoria da instituição assumiu as atividades em 2021 e, sempre que solicitada, tem se pronunciado sobre as mais diversas questões que envolvam o colégio e toda a comunidade escolar.

Em relação à morte de João Paulo, apontou que se solidariza com a dor dos familiares e amigos e que sempre prestou auxílio à família e às autoridades.

Novo delegado e investigações reiniciadas

Em meio a esse cenário e poucos dias após a morte do João Paulo completar três anos sem uma solução para o caso, o delegado seccional assinou um comunicado, em 4 de janeiro de 1993, no qual repassou a chefia das investigações para o seu assistente na seccional, o delegado José Maria Franchim.

Bastos diz no comunicado que devido ao acúmulo de serviços na delegacia seccional, principalmente os administrativos, transferia o inquérito ao assistente da seccional. Veja o documento abaixo:

Comunicado de transferência do inquérito do caso João Paulo para o delegado José Maria Franchim — Foto: Reprodução/ Polícia Civil

Após assumir a chefia das investigações, Franchim decidiu começar as investigações do zero. Mas ele conseguiu concluir o inquérito e, 11 meses depois de assumir, pediu a prisão de um suspeito.

E uma das testemunhas-chaves nessa conclusão das investigações, que na época tinha apenas 11 anos, concedeu pela primeira vez uma entrevista sobre o caso para o g1. Nela, deu uma nova versão sobre o que se lembra daquele final de semana e falou situações incômodas que invadiram sua infância durante as investigações.

Esses desdobramentos serão mostrados nos próximos episódios dessa série.

Sapatos e roupas de João Paulo foram encontrados arrumados ao lado do corpo — Foto: Reprodução/ Poder Judiciário


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