Estiagem 2024
Calendários escolares precisam ser constantemente adaptados, e até o acesso à saúde e a serviços básicos, como água potável, torna-se uma tarefa árdua e desafiadora.
Amariles Gama
cidades@acritica.com
29/09/2024 às 10:12.
Atualizado em 29/09/2024 às 10:16
(Foto: Junio Matos/A Crítica)
O ciclo de descida e subida dos rios não é novidade para as populações que vivem às margens dos rios no Amazonas. Porém, com eventos cada vez mais extremos, essas comunidades são obrigadas a incorporar estratégias para enfrentar um cenário desafiador e, muitas vezes, imprevisível, como a seca severa. Calendários escolares precisam ser constantemente adaptados, e até o acesso à saúde e a serviços básicos, como água potável, torna-se uma tarefa árdua e desafiadora.
Na Costa do Tabocal, região crítica para a navegação, próxima ao município de Itacoatiara (270 quilômetros de Manaus), o morador da comunidade São Raimundo, Paulo Ricardo Nascimento, de 37 anos, conta que conseguir água durante a estiagem é uma tarefa difícil, porque não dá para tirar água do rio Amazonas, que é barrenta e suja. Sem alternativas, ele percorre um longo trajeto com baldes e garrafas para buscar água limpa para beber em um lago.
“Pego dois baldes que tenho aqui, as garrafas, levo, vou por aqui caminhando cerca de uns 7 minutos para chegar lá [no lago], aí eu pego a canoa, vou remando, aí tem que andar acho que uns 100 metros pra poder chegar no Xororó, encho as garrafas, os baldes e volto no mesmo percurso que eu fiz, voltando com os baldes, trago um, volto para pegar os outros, as garrafas, a mesma coisa até chegar aqui”, relatou.
A filha dele, Adrielly da Silva Barreto, de 21 anos, também destaca a dificuldade da escassez de água até para os afazeres domésticos diários. “Tem que economizar, não lavar roupa todo dia. Agora facilitou porque temos uma bomba para puxar água, só que ela já não funciona com a mesma força por conta da seca e demora encher os baldes. Quando acaba, tem que esperar um tempão para encher”, disse a jovem.
Escolas suspendem aulas devido à seca
Durante a estiagem, o caminho para a escola nessas comunidades também se transforma em uma jornada exaustiva e perigosa. Barcos escolares encalham, o trajeto a pé tem lama até os joelhos, as crianças chegam sujas e cansadas à escola, e muitas delas não conseguem nem chegar por conta do isolamento das comunidades.
A cada dia que passa e a estiagem avança, aumenta, também, o isolamento de comunidades ribeirinhas no Amazonas (Foto: Junio Matos)
A gestora da Escola Municipal São Francisco, Rosimar Barros Figueiredo, afirma que, este ano, as aulas foram suspensas no dia 11 de setembro, um mês antes do previsto, que era em outubro. Essa data foi estipulada tendo em vista que, no passado, o encerramento do bimestre estava previsto para dezembro, mas as atividades tiveram que ser suspensas ainda no início de outubro. Ou seja, a imprevisibilidade tem se tornado constante na vida escolar dessas comunidades.
“As crianças dos lagos se deslocavam, a lancha pegava e trazia até a escola. Chegavam sujas de lama, porque tem muita lama no Madeira, e chegavam cansadas de fazer longas caminhadas, principalmente os alunos do Lago do Faustino, que é muito distante. Eles andavam para chegar até a beira do rio, mais de 5 km, só que faziam parte do percurso a pé e outra parte de rabetinha, até remando e atolando, muita dificuldade”, relata a diretora da escola.
Alternativas
Enquanto as crianças não conseguem chegar à escola, a alternativa é a entrega de apostilas em locais estratégicos, mas Rosimar destaca a dificuldade de manter o aprendizado nessas condições. “Ano passado, depois de meses sem aula, algumas crianças voltaram sem saber nem escrever o nome”, disse a gestora, destacando que acha difícil pensar que um dia tudo voltará à normalidade.
Com a escassez de água, o jeito é economiza, não lavar roupa e louças todos os dias até que o rio volte a subir (Foto: Junio Matos)
“Creio que não. O que eu vejo é que a cada ano está ficando pior: quentura, a seca... A cada ano, eu, que nasci e fui criada aqui, nunca tinha visto uma seca dessa dimensão, tão grande. Mas a gente procura fazer o melhor para que não fique uma defasagem tão grande no aprendizado das crianças”, ressaltou.
A saúde em tempos de seca
Na área da saúde, o cenário é igualmente desafiador. Para quem vive às margens dos rios no Amazonas, a saúde já é um desafio constante, mas, em tempos de seca, com as águas rasas e a dificuldade de navegação, a situação se agrava.
É o que relata a chefe da Unidade de Apoio Rural (UAR) da comunidade São Raimundo, Raimunda do Nascimento Figueiredo.
“Tem que ter uma estratégia e muita boa vontade. Essa semana que passou, os meninos encontraram uma cobra no caminho, tiveram que matá-la para que as meninas pudessem passar. Então, é uma dificuldade, é risco na mata, já tem rastro de onça, não é um caminho limpo, é uma trilha na mata mesmo, é muito distante, é dificuldade, é cansaço, desce ladeira, sobe ladeira. Se não for muito amor pela profissão e pelas pessoas, não consegue fazer. Tem que ter muita boa vontade e amor no coração para dar assistência”, disse Raimunda.
Segundo Raimunda, a unidade atende cerca de 700 pessoas, mas, por conta da seca, essas pessoas não conseguem mais chegar. Então, os agentes de saúde precisam se deslocar até às comunidades isoladas para levar medicações e atendimento.
“A gente pede o medicamento com antecedência, para dois a três meses, porque não tem como. Se o rio secar mais, vai ter dificuldade para o barco que vem de Manaus, que é o Antônio Oliveira, trazer a equipe médica, uma equipe multiprofissional para dar atendimento às comunidades, e são eles que abastecem a gente de medicação. Quando o rio seca muito, o barco não consegue chegar em algumas comunidades, então a gente tem que pedir para que não falte caso o rio venha secar mais”, disse.
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