Com rios secos, cresce pressão para asfaltar 400 km na Amazônia

Com rios secos, cresce pressão para asfaltar 400 km na Amazônia


Maior estiagem em 120 anos no Amazonas paralisa Polo Industrial de Manaus e leva políticos a exigir asfaltamento de quase metade da BR-319, que liga capital amazonense a Porto Velho

BR-319: pressão para asfaltar um trecho de 400 km dos 890 km da rodovia

seca dramática que está isolando municípios do Amazonas, Acre e Rondônia e impedindo o escoamento de alimentos e mercadorias pelos rios - único meio de transporte da região - ganhou um novo capítulo que remete ao velho debate sobre a viabilidade econômica da Amazônia.

Com o agravamento da estiagem, políticos do Amazonas (estado com 60 dos seus 62 municípios em estado de emergência ou de alerta) estão pressionando o governo federal para a retomada do projeto de asfaltamento de um trecho de 400 km dos 890 km da rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto Velho.

Ambientalistas e ONGs que atuam na região são contra, alegando que a obra só agravaria problemas crônicos da Amazônia, como desmatamento, grilagem de terras, garimpo, queimadas e a segurança de comunidades indígenas. Mas o governo Lula criou um grupo de trabalho para analisar a viabilidade da obra.

O pedido pelo asfaltamento da rodovia é antigo. O mais recente ocorreu em julho de 2022 - nos meses finais da gestão de Jair Bolsonaro -, quando o então presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, chegou a emitir licença prévia para pavimentação do chamado “trecho do meio” da BR-319, entre os quilômetros 250 e 655.

Durante a campanha presidencial, o então candidato Lula se comprometeu a analisar o tema. A mudança de governo, porém, deixou o projeto em compasso de espera - a obra não foi incluída na nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em agosto.

Com os primeiros sinais da estiagem, os políticos amazonenses retomaram a pressão. No fim de setembro, o senador Omar Aziz (PSD) afirmou que a seca dos rios poderia causar o isolamento de 4 milhões de pessoas. Já o senador Eduardo Braga (MDB) disse que o desabastecimento na região era efeito da “inexistência da BR-319” e “da questão ambiental”.

No início do mês, quando o governo Lula criou uma força-tarefa liderada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin e vários ministros para visitar a região atingida pela seca, os políticos amazonenses cercaram a comitiva e elegeram como alvo a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

O deputado estadual e presidente do PT-AM, Sinésio Campos, chegou a cobrar a ministra, com dedo em riste, pela liberação da obra da BR-319. Impassível, a ministra lembrou que o presidente Lula determinou que estudos fossem feitos sobre a obra, citando a criação do grupo de trabalho. “O Ibama não dificulta nem facilita, ele faz uma análise técnica”, disse Marina.

Indústria parada

Os estragos sociais e econômicos causados pela estiagem, no entanto, podem impulsionar o asfaltamento da rodovia. Na segunda-feira, 16 de outubro, a vazante no Rio Negro chegou a apenas 13,59 metros – o menor nível em 120 anos, desde que a medição foi iniciada, em 1902, no Porto de Manaus. Em toda a região, cerca de 500 mil pessoas estão isoladas pela via fluvial, impedidas de receber os carregamentos de alimentos, soja, combustível e gás de cozinha.

A seca já está paralisando setores inteiros da economia amazônica. Das mais de 100 grandes indústrias do Polo Industrial de Manaus, 35 irão dar férias coletivas para 17 mil trabalhadores a partir do dia 25 deste mês até 4 de novembro. O motivo: os rios sem navegabilidade impedem a circulação dos navios cargueiros, que trazem contêineres da Ásia com peças e equipamentos para montagem de eletroeletrônicos.

Trecho seco do Rio Negro em São Gabriel da Cachoeira (AM) (Foto: Agência Brasil)
Trecho seco do Rio Negro em São Gabriel da Cachoeira (AM) (Foto: Agência Brasil)

O fenômeno do El Niño tem influência direta na seca do Amazonas. Ele se manifesta com o aquecimento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico, afetando o regime de chuvas em várias partes do mundo – enquanto provoca estiagem na Amazônia, a Região Sul sofre com chuvas ininterruptas.

O argumento principal dos ambientalistas, porém, é que o asfaltamento da BR-319 não vai ameaçar a região – e sim agravar um quadro que já é dramático. O desmatamento tem sido particularmente devastador no entorno da rodovia, causando um aumento do número de queimadas ao longo do trajeto, retroalimentando a crise climática.

"A BR-319 tem se mostrado inviável do ponto de vista ambiental, social, econômico, dos direitos humanos e de saúde pública", diz Lucas Ferrante, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Segundo ele, se pavimentada, a BR-319 ligaria a Amazônia central ainda preservada ao “arco do desmatamento”, expandindo as anomalias climáticas observadas nessa região já devastada.

"As mudanças climáticas na Amazônia central provocadas pela sua pavimentação podem significar a extinção da navegação para alguns rios como o Madeira, uma das principais calhas de escoamento de produtos de Manaus", acrescenta Ferrante.

De acordo com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), o governo federal gastou nos últimos sete anos R$ 572,9 milhões na manutenção e na conservação da BR-319 – boa parte para consertar os estragos causados pelo período de chuvas, que vai dezembro a maio.

O atual presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, afirmou há alguns dias que o fato de a BR-319 ter longos trechos sujeitos a inundações facilita a viabilidade da obra, pois “os alagamentos são uma condição para que o desmatamento não cresça tanto” na região.

Para Marcus Quintella, diretor da FGV Transporte e especialista em infraestrutura, uma solução da BR-319 precisa ser definida levando em conta os problemas sociais, econômicos e ambientais que o asfaltamento acarreta.

“Tudo precisa ser pesado e colocado na balança, a licença prévia com certeza leva em conta mitigações“, diz Quintella. “Não  há dúvida que existe politização, mas em termos de transporte, a BR-319 é uma rodovia estruturante, desenvolvimentista, que precisa ser concluída, o que não pode é ficar na atual situação."

Pressionada pelos políticos amazonenses, a ministra Marina Silva reforçou que o debate está longe de um desfecho, afirmando que o asfaltamento da BR-319 já era um tema quando deixou pela primeira vez o governo, em 2008. “Se fosse fácil fazer a BR, ela teria sido feita nesses 15 anos. Existem licenças para recuperação de trechos, uma desde 2007, e nada foi feito”, afirma.

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