Cursos custam de US$ 12 mil a US$ 50 mil e passou por países como Costa Rica e Filipinas. Evento na capital paulista ofereceu bebida, comida e transporte a mulheres que dizem não saber que convidados eram 'alunos'; uma delas fez boletim de ocorrência.

Por Carlos Henrique Dias, g1 SP

  • Dois coaches dos EUA fizeram uma festa em SP e usaram brasileiras como 'cobaias' para alunos de um "curso de conquista".

  • As mulheres não sabiam que eram parte de uma aula prática; ao menos duas delas denunciaram o caso à polícia.

  • Vendido por preços que variam de U$ 12 mil a U$ 50 mil, o pacote também teve aulas na Costa Rica, na Colômbia e nas Filipinas.

  • Ao g1, desembargadora disse que condutas podem ser consideradas tráfico de pessoas e favorecimento da prostituição

Coaches fazem kits com pílula do dia seguinte e camisinha para ‘alunos’ se relacionarem

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Sem saber, ao menos quatro jovens mulheres de São Paulo dizem que viraram "cobaias" de dois coaches estrangeiros em uma festa que funcionou como aula prática de um curso que ensina homens a conquistar mulheres (veja mais no vídeo acima).

O evento ocorreu no final de fevereiro, em uma mansão no Morumbi, na Zona Sul de São Paulo, e foi promovido por Mike Pickupalpha e David Bond, do site Millionaire Social Circle ("Círculo Social de Milionários").

Mike já apareceu em canais no Youtube filmando mulheres com câmeras escondidas em diversos países. Já David Bond chama-se, na verdade, Steven Mapel – ele diz ser um especialista em namoro on-line e produtor de conteúdo digital.

Em entrevista na noite de terça-feira (14), Mike foi perguntado mais de uma vez pelo g1 se as convidadas sabiam que seriam usadas como cobaias de um curso de conquista. Ele não respondeu diretamente. Em vez disso, apontou que se tratava de um evento em que havia adultos "que escolheram estar lá por livre e espontânea vontade".

O curso, oferecido a estrangeiros de vários países, cobra a partir de US$ 12 mil (cerca de R$ 63 mil) em troca de consultoria de conquista e viagem de duas semanas para algum país. Além do Brasil, houve edições na Costa Rica (em fevereiro de 2022), Colômbia (julho de 2022) e Filipinas (agosto de 2022). A próxima etapa será na Tailândia, em agosto.

O pacote com seis países, chamado de World Tour, sai por US$ 50 mil (cerca de R$ 262,7 mil), segundo o site do grupo.

“Venha explorar com David e Mike e conheça as mulheres brasileiras ao redor do mundo que são conhecidas por serem divertidas, curvilíneas e apaixonadas”, disse o anúncio da viagem ao Brasil.

Em um vídeo, a dupla exibe o kit a ser levado na bagagem: pílulas do dia seguinte, usadas para evitar gravidez em relações sexuais sem preservativo, camisinhas e perfumes com feromônios -- que supostamente secretariam substâncias para chamar atenção das mulheres.

Quatro mulheres relataram ao g1 que não sabiam que fariam parte de uma aula prática de conquista (veja relatos mais abaixo nesta reportagem). Duas chegaram à festa por meio de convites em redes sociais. As duas, depois de terem conhecido alunos do curso no Tinder, um aplicativo relacionamento.

Uma delas registrou um boletim de ocorrência eletrônico na Polícia Civil para registrar que foram filmadas sem autorização e que poderiam ser usadas no curso. Todas disseram que não sabiam que os homens estrangeiros faziam parte das "aulas". As mulheres pediram que a identidade delas fosse preservada.

Foi esse aspecto — o fato de as mulheres não saberem que eram cobaias — que fez relatos surgirem nas redes sociais nas últimas semanas.

Ouvida pelo g1, a advogada e desembargadora aposentada do Tribunal Regional Federal da 3ª Região Cecilia Mello afirmou que as condutas podem ser consideradas tráfico de pessoas e favorecimento da prostituição (leia mais abaixo).

O que você precisa saber sobre o caso

  • Dois coaches dos Estados Unidos venderam cursos de US$ 12 mil a US$ 50 mil.
  • "Alunos" estrangeiros aprendiam, com técnicas deles, a se relacionar com mulheres.
  • As mulheres não sabiam que eram parte da aula prática do curso.
  • Grupos de alunos viajavam para países como Costa Rica, Colômbia, Filipinas e Brasil, em fevereiro. Os participantes da edição brasileira se encontraram com mulheres por meio de apps e outras foram chamadas por redes sociais.
  • Coaches fizeram uma festa na Zona Sul de São Paulo com comida, bebida à vontade e transporte; o caso repercutiu depois que algumas mulheres descobriram que homens faziam curso.
  • Ao menos duas delas denunciaram o caso para a polícia e alegam que foram filmadas sem autorização; material colhido por eles é usado em grupos e para publicidade.
  • A próxima etapa do curso deve ocorrer na Tailândia.

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O que dizem as mulheres

Festa realizada em mansão de São Paulo — Foto: Arquivo

A mulher que registrou o boletim de ocorrência disse ter visto vídeos publicados em que ela aparece com os alunos da "mentoria" de conquista. Foi o que a fez querer denunciar. Ela disse ter conhecido um rapaz no Tinder e sido convidada a jantar com "amigos" dele.

“Saímos algumas vezes até ele me convidar para o jantar, que me disse que seria com amigos deles. Foi normal [o jantar] e conversamos sobre assuntos tranquilos, até porque eu queria praticar o inglês. Ficavam filmando o tempo todo e eu tentava me esquivar porque não gosto que me filmem”, lembra.

No dia seguinte, a brasileira foi convidada pelo homem para a festa na mansão.

“Na festa tinha muitas mulheres e nem todas sabiam falar inglês. Havia funcionários, DJ, garçons. Uma das mulheres me disse que foi [à festa] por causa de um anúncio e aí achei estranho, porque ela disse que pagaram o transporte também. Eu achei que era algo mais reservado."

A outra mulher que foi à festa na mansão também conheceu pelo Tinder o homem que a chamou. Ela disse que deu "match" com um americano e foi convidada para jantar. O rapaz disse que fazia parte de um grupo de negócios e a convidou para um primeiro encontro. Lá, afirmou, havia outras mulheres que estavam com os "amigos" dele. Ela não sabia, mas eram outros alunos do curso.

“Conheci outras meninas brasileiras lá e até gostei, porque eu não sei muito bem inglês. Era um restaurante muito chique, até exagerado. O rapaz que eu saí me tratou muito normal, bem de início, criando um vínculo. Tinha gente de vários países. Não me senti desconfortável naquele momento.”

O encontro foi antes da festa. Dias depois, ela recebeu um convite para colocar dados pessoais e fazer parte da lista do evento.

“Não fiquei até o fim da festa. Interagi mais com a meninas que conheci no jantar, mas conheci uma menor de idade que disse que conhecia pessoas na organização. Disse que logo faria 18 anos, mas estava numa festa de comida e bebidas à vontade. Não vi ela ficando com ninguém, mas disse que se sentiu incomodada ao ter visto um casal fazendo sexo em um dos quartos.”

O que dizem os citados

Vídeo feito antes da viagem ao Brasil — Foto: Reprodução

Mike Pickupalpha, do site Millionaire Social Circle, falou com o g1 na noite de terça-feira (14). Perguntado por mais de uma vez se informava as mulheres de que a festa era aula prática do curso de conquista, não respondeu.

“Foi uma festa coorganizada com meus amigos brasileiros. Alguns trouxeram suas próprias namoradas. Uma festa com adultos que escolheram estar lá por livre e espontânea vontade. Comida, segurança e transporte adequado foram fornecidos.”

Perguntado sobre menores de idade no evento, o coach não negou, mas disse possivelmente haver câmeras de segurança no local. “No formulário de candidatura dissemos que era preciso ter mais de 18 anos e pedimos à segurança para fiscalizar e fiscalizar todos.”

'Fraude está no uso dissimulado e mentiroso'

Site dos coaches que venderam curso para homens — Foto: Reprodução

O g1 procurou o Ministério do Turismo, mas não houve resposta até a última atualização desta reportagem.

A advogada e desembargadora aposentada do Tribunal Regional Federal da 3ª Região Cecilia Mello, analisou o site e o “modus operandi”. Cecília afirma que o Tinder é “um aplicativo de encontros voluntários” e a vontade de cada um é o que deve prevalecer.

“A fraude está no uso dissimulado e mentiroso do aplicativo para aquilo que não será um encontro voluntário, mas sim ‘um treinamento’ de relacionamento para homens endinheirados num projeto de afirmação de suas virilidades, incapazes de gerir as suas próprias vidas afetivas e amorosas, mas plenamente capazes de optarem pela prática de crimes voltados à exploração sexual de mulheres em território brasileiro.”

“Tudo isso dentro de um suposto treinamento que visa resultados numéricos, instantâneos e de convencimento da mulher para o sexo no primeiro encontro, com ‘domínio da arte de abordagem’ em qualquer local”, completa.

A especialista explica que ao forjar se tratar de um encontro voluntário, praticar exploração sexual e oferecer vantagens os casos podem ser caracterizados com crimes previstos nos artigos 149-A e 228 do Código Penal.

“O primeiro de tráfico de pessoas por ‘agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso’ para o fim, dentre outros, de exploração sexual. A pena é de reclusão de quatro a oito anos e pode ser aumentada de um terço até a metade se a vítima for retirada do território nacional”.

O segundo de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual “imputável ao próprio agressor, ao aliciador, ao intermediário que se beneficia comercialmente do abuso. A pena é de dois a cinco anos e multa”, detalha.

Convite enviado para cadastro para a festa em São Paulo — Foto: Reprodução

Coaches dizem estar orgulhosos do grupo que esteve no Brasil — Foto: Reprodução

Anúncio no site dos coaches — Foto: Reprodução

Imagens usadas em apresentação para a viagem ao Brasil — Foto: Reprodução